A Constituição Federal
trata da livre iniciativa em diversos dispositivos, iniciando o assunto já em
seu artigo 1º, inciso IV, trazendo lado a lado os valores sociais do trabalho e
da livre iniciativa, que novamente são mencionados conjuntamente no art. 170:
Art.
170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios:
I
- soberania nacional;
II
- propriedade privada;
III
- função social da propriedade;
IV
- livre concorrência;
V
- defesa do consumidor;
VI
- defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme
o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
VII
- redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII
- busca do pleno emprego;
IX
- tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)
Parágrafo
único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei.
Portanto,
podemos interpretar que a Constituição brasileira considera fundamental a livre
iniciativa, porém, inserida num contexto de dignidade humana e justiça social traduzidas
na valorização do trabalho ao observar os princípios elencados no art. 170.
A
todos é garantido o exercício empresarial de acordo com os ditames do sistema capitalista
liberal democrático, sem que isso signifique liberdade de mercado total, pois
ao Estado são resguardadas as situações em que se deve intervir nos casos em
que um sopesamento de princípios indique um desequilíbrio indesejável ou porque
em certos casos assim deseja a orientação política predominante naquele
momento.
Como exemplo de
sopesamento que envolve vários fatores políticos, mas baseia-se principalmente
na tentativa de se assegurar existência digna para os cidadãos através do
acesso facilitado ao ensino superior:
“Em
conclusão, o Plenário, por maioria, julgou improcedente pedido formulado em
ação direta ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino,
pelo Partido Democratas e pela Federação Nacional dos Auditores-Fiscais da
Previdência Social contra a MP 213/2004, convertida na Lei 11.096/2005, que
instituiu o Programa Universidade para Todos (PROUNI), regulou a atuação de
entidades de assistência social no ensino superior, e deu outras providências –
v. Informativo 500. O programa instituído pela norma adversada concedera bolsas
de estudos em universidades privadas a alunos que cursaram o ensino médio
completo em escolas públicas ou em particulares, como bolsistas integrais, cuja
renda familiar fosse de pequena monta, com quotas para negros, pardos,
indígenas e àqueles com necessidades especiais. (...) Esgrimiu-se, ademais, a
assertiva de ofensa ao princípio da livre iniciativa (CF, art. 170), ao
fundamento de que este postulado já nasceria relativizado pela própria
Constituição. Isso porque a liberdade de iniciativa estaria sujeita aos limites
impostos pela atividade normativa e reguladora do Estado, justificados pelo
objetivo maior de proteção de valores também garantidos pela ordem
constitucional e reconhecidos pela sociedade como relevantes para uma
existência digna, conforme os ditames da justiça social. (ADI 3.330, Rel. Min.
Ayres Britto, julgamento em 3-5-2012, Plenário, Informativo 664.)
É
uma limitação à livre iniciativa e à livre concorrência e uma interferência
direta do Estado no mercado da educação. Considerou-se que a formação em nível
superior por instituições de ensino privadas é atividade econômica em sentido
amplo, uma prestação de serviço público, pois a educação é direito social e o
incentivo estatal está em consonância como os objetivos estruturantes da
Constituição.
Novamente, a existência
digna conformada pela valorização do trabalho limita as pretensões do “lassez
faire” em uma decisão do Supremo Tribunal Federal:
“A
lei questionada não viola o princípio do pleno emprego. Ao contrário, a
instituição do piso salarial regional visa, exatamente, reduzir as
desigualdades sociais, conferindo proteção aos trabalhadores e assegurando a
eles melhores condições salariais.” (ADI 4.364, Rel. Min. Dias Toffoli,
julgamento em 2-3-2011, Plenário, DJE de 16-5-2011.)
De
maneira quase inacreditável, houve questionamento em relação ao salário mínimo
regional em confronto com o princípio do pleno emprego.
Inicialmente
deve-se apontar que na teoria liberal, o desemprego é indispensável ao
funcionamento do mercado de trabalho. É o chamado desemprego estrutural que se
refere basicamente às pessoas que se recusam a prestar seus serviços pelo preço
que é oferecido, ou seja, estão na transição entre ocupações, normalmente por
vontade própria. Portanto, o pleno emprego não significa, nem na teoria (neo)liberal,
que todas as pessoas estarão empregadas simultaneamente. Ao confrontar esse
princípio com o instituto do salário mínimo regional, que, pelo seu próprio
nome já indica tratar de valores ínfimos, pode-se imaginar que a gana do
capitalista realmente necessita da intervenção do Estado para que se concretize
a sua própria sobrevivência, pois, ao que parece, aquele ignora o conceito de
mercado consumidor. Se os trabalhadores não possuírem uma renda que lhes
permita viver com o mínimo de dignidade, como será então que poderão participar
da cadeia de consumo? Já há muito se chegou à conclusão de que o Estado deve
garantir a sobrevivência do sistema capitalista, e neste caso, indo de encontro
às pretensões daqueles que contrariam os seus próprios interesses.
O
caso da “meia-entrada” para estudantes demonstra que a persecução de um país
socialmente justo é justificativa para outra intervenção frente ao princípio da
livre iniciativa:
"É
certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema
no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não
legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em
situações excepcionais. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa
Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo
Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o
Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus
arts. 1º, 3º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não
apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao
contemplá-la, cogita também da ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, portanto,
como bem pertinente apenas à empresa. Se de um lado a Constituição assegura a
livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as
providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à
cultura e ao desporto (arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da
Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser
preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito
ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer são meios de complementar a formação
dos estudantes." (ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005,
Plenário, DJ de 2-6-2006.) No mesmo sentido: ADI 3.512, julgamento em
15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006.
O ministro menciona
diretrizes e programas constitucionais que em sua grande maioria são chamados
normas de eficácia limitada definidoras de princípios programáticos, isto é, a
sua aplicabilidade não é imediata, podendo, na prática, o Estado escolher em
qual momento elas serão utilizadas. Possivelmente em uma situação de crise
econômica, a lei não teria sido editada, mas já que o foi, o Ministro traz à
tona e se vale das normas programáticas para ponderar sobre a limitação à livre
iniciativa deixando esta vencida, beneficiando o que ele considera o interesse
da coletividade.
As
próximas ementas dizem respeito à limitação da livre iniciativa pelos
princípios da defesa do consumidor e da livre concorrência:
“Farmácia. Fixação de horário de
funcionamento. Assunto de interesse local. A fixação de horário de
funcionamento para o comércio dentro da área municipal pode ser feita por lei
local, visando o interesse do consumidor e evitando a dominação do mercado por
oligopólio.” (RE 189.170, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em
1º-2-2001, Plenário, DJ de 8-8-2003.) No mesmo sentido: AI 729.307-ED, Rel.
Min. Cármen Lúcia, julgamento em 27-10-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009;
RE 321.796-AgR, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 8-10-2002, Primeira Turma,
DJ de 29-11-2002; RE 237.965-AgR, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em
10-2-2000, Plenário, DJ de 31-3-2000.
"O
princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da
atividade econômica. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da
Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou
vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor."
(RE 351.750, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgamento em 17-3-2009, Primeira Turma, DJE de 25-9-2009). Vide: RE
575.803-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 1º-12-2009, Segunda Turma,
DJE de 18-12-2009.
"O
princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de
regulamentação do mercado e de defesa do consumidor." (RE 349.686, Rel.
Min. Ellen Gracie, julgamento em 14-6-2005, Segunda Turma, DJ de 5-8-2005.) No
mesmo sentido: AI 636.883-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-2-2011,
Primeira Turma, DJE de 1º-3-2011.
As
regras de defesa do consumidor hipossuficiente mostram prevalência em relação
ao princípio geral da livre iniciativa empresarial. Não é de se estranhar que a
defesa da livre concorrência esteja em consonância com a defesa do consumidor,
pois quanto mais opções houver, maior será o proveito para o consumidor (até
certo ponto, pois há situações em que o progresso técnico e qualitativo surge
quando o mercado está favorável a poucos fornecedores).
De
maneira geral, o princípio da livre iniciativa quando tomado literalmente nos
moldes de um neoliberalismo vulgar, quase do senso comum, torna-se uma condição
que leva à tendência de sua própria ruína. Para evitar que isso ocorra, há o
Estado, que em um de seus papéis fundamentais deve agir para manutenção e,
quando possível, melhoria do sistema capitalista. Há muito tempo essa
necessidade foi identificada e ratificada por pensadores como Smith, Keynes e
Marx. No entanto, o capitalista do senso comum não costuma ser capaz de
enxergar, e talvez nem lhe interesse saber, que o sistema não se beneficia
quando apenas um agente se enriquece. Quando há a total liberdade dos agentes
econômicos, há a tendência cíclica às crises de superprodução e de falta de
mercado consumidor, levando à socialização das perdas entre todos os cidadãos. É
papel do Estado impedir que isso aconteça, realizando uma política de controle
e intervenção a longo prazo, pois, de acordo com a Constituição, é interesse de
toda a sociedade o funcionamento estável da economia com o propósito de se
assegurar a existência digna atender os ditames da justiça social.
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